quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Reflexões

não possuirmos os recursos suficientes para a ajuda necessária. Felizmente, uma corajosa jovem psiquiatra assumiu o caso com muita sensibilidade e empenho, respondendo ao apelo da família de que cuidasse o filho. Ao longo da avaliação, a equipe dividiu-se: alguns julgaram que não teriam recursos para contribuir num caso de violência intrafamiliar tão grave e outros pensaram que poderiam ajudar, sentindo-se também desafiados... Foi feita notificação à Promotoria de Justiça e solicitada sua colaboração no encaminhamento do caso. Todas as ações sugeridas foram acatadas até que a mãe decidiu retirar a caso, o que foi aceito pelo Juiz.

Eu, pessoalmente, supus que, para desencadear-se tal violência, deviam haver simultaneamente uma fragilidade biológica pessoal importante e uma situação familiar e ambiental facilitadora. Na época, não sabíamos que Raul usara álcool e crack. Estas ideias motivaram-me a explorar os recursos positivos que essa família deveria ter, já que se mostravam muito empenhados e competentes na busca de ajuda para o filho. Apesar de, como já disse, estar assustada.

Assumi como supervisora do caso num segundo momento, quando já se identificara a grave lesão neurológica frontal que, associada ao uso de álcool e crack, explicava a agressividade e a perda de controle. Ainda não se compreendia a dinâmica familiar facilitadora. No meu primeiro contato com a família, novamente me assustei ao ver a aparente dureza do olhar de Raul. Mas isso me desafiou a perseverar na busca de entender e ajudar.

Fui orientada por minha crença básica de que as pessoas não nascem nem boas nem ruins, mas que se constroem na convivência (mesmo quando têm fragilidades genéticas), e que as famílias são muito poderosas, influenciando para o bem e para o mal. Acredito também que uma boa rede social facilita muito a saúde.

Já sabia da necessidade de trabalhar multissistemicamente em casos de violência e abuso e drogas, envolvendo recursos da saúde, educação, trabalho e aspectos legais1,2. Este caso permitiu-me testar e validar todas essas convicções.

Devagar, fomos descobrindo a dificuldade de duas gerações de homens com abuso de álcool em ambos os lados da família, com esposas em relações de submissão que não puderam ajudar os parceiros em suas doenças. Identificamos uma grave disfunção conjugal que prejudicava a função parental pela falta de parceria e eficiência na resolução de problemas e colocação de regras e limites. Apareceram problemas transgeracionais graves entre genro e sogra e entre nora e sogra, com uma única intercorrência de quase agressão durante o tratamento. Aliás, se pudesse refazer a sessão de psicoterapia familiar que antecedeu esse evento, enfatizaria mais a frequência com que a equipe de saúde não consegue evitar recaídas e/ou ajudar na resolução do abuso de substâncias, porque aparentemente deixei a mãe de Pedro muito irritada ao apontar que seu marido morrera de cirrose alcoólica e que Marta queria evitar que isso acontecesse com Pedro. Pensei que seria uma forma de motivar a sogra a colaborar com a nora, mas desencadeou-se uma torrente de acusações mútuas, (e possivelmente autoacusações) que quase resultaram em agressão no corredor do hospital.

Afora essa situação, o trabalho foi muito recompensador porque paulatinamente fomos percebendo mudanças significativas, em especial em Raul e também em seus pais nos cuidados dos filhos. O processo com Raul - na busca de ajudá-lo a assumir a responsabilidade por seus atos e pelos danos causados, culminando com o pedido de perdão à mãe - foi emocionante e com evidências de legítimo arrependimento.

Raul parece ter sido uma criança superprotegida que não recebia limites claros: nascera de uma gravidez adolescente, e os pais foram morar com a família paterna; era o primeiro neto de uma família que superprotegia os homens. Seus comportamentos agressivos sempre foram minimizados. Pedro parece ainda estar mais "casado" com a própria mãe do que com a mulher. As duas têm um conflito de toda a vida, assim como o Pedro com sua sogra, que parece não ter vida longe dos filhos. Pedro é o herói e o escravo de suas relações nesta história, assim como Raul. A mesma superproteção que impediu os pais de relatar a real história à Justiça, salvou Raul de ir para a FASE e o colocou dentro de um serviço de saúde que cuidou dele e de sua família, desafiando-os e ajudando-os a ir além de seus padrões de funcionamento habituais. Porém, se não houvesse essa atenção do serviço de saúde, Raul provavelmente entraria num círculo vicioso de piora comportamental e acabaria sendo mais um problema, entre outros tantos que o sistema de Justiça tenta inutilmente resolver.

Desde o início de nosso trabalho com a família, adotamos uma abordagem de tratamento multissistêmica: oferecemos psicoterapia individual para Raul e psicoterapia familiar, com os respectivos terapeutas trabalhando juntos e separados, dependendo da necessidade. A supervisão acontecia em conjunto e sempre contava com sessões ao vivo com a família, se necessário. As discussões de caso, no início, eram tão frequentes que os outros alunos se queixavam, com alguma razão, de não receberem a mesma atenção.

Outros psiquiatras estiveram envolvidos no tratamento mais adiante, com terapia individual para Cássio e substituindo os colegas quando estes mudaram de função dentro da instituição em janeiro de 2009. Na época, a terapeuta familiar tinha disponibilidade para continuar tratando Marta individualmente, já que esta se vinculara muito a ela. Nas demais posições, houve substituição. Aquele verão foi muito complicado para a família que teve que contar com o lado materno para acolher pai e filho no litoral, sendo o ambiente regado a álcool. Foi também complicado para a equipe que estava em fluxo e para a supervisora que adoeceu. Apesar de tudo, o tratamento não se interrompeu e não houve recaída. O ano de 2009 continuou complicado, houve mais doenças na equipe, aconteceu o surto de gripe A que quase parou o hospital. Nesse período, houve a recaída de Raul com risco de suicídio, e decidimos aproveitar para buscar vinculá-lo ao serviço de saúde da organização na qual o pai trabalha, inclusive fazendo visita ao hospital e criando uma rede de colaboração entre as duas equipes.

Nesse ínterim, conseguimos (colocando isso como condição indispensável para manter o tratamento) que o pai aceitasse tratar seu problema com o álcool. Este evoluiu bem por curto período. No final do ano, pai e filho desistiram dos respectivos tratamentos psicoterápicos. Porém, Raul e seus pais sabiam que todos precisavam e que Raul não poderia ficar sem medicação; sabiam que, devido a Raul ter atingido a maioridade, o tratamento não poderia mais ser realizado em nosso serviço. Raul continuou o cuidado com a medicação no serviço de saúde da corporação do pai. Tentamos encaminhar o casal para terapia, mas eles não a procuraram. Marta manteve seu trabalho pessoal.

Creio que o trabalho continuado com Marta propiciou grande estabilidade para ela e, em consequência, para a família. A frequência das consultas diminuiu muito, mas Marta ainda conta com sua terapeuta para qualquer eventualidade.

Na entrevista de seguimento, Raul declarou que a psicoterapia do período inicial ajudou-o a mudar suas ideias. Esta é uma declaração importante. Antes Raul não admitira que a psicoterapia ajudara. Também disse que a maior ajuda foi separá-lo do grupo com quem convivia, o que vem ao encontro do que se sabe sobre a efetividade do tratamento com transtorno de conduta e abuso de substâncias.

Creio que a dificuldade maior que enfrentamos foi em relação a ajudar Pedro a interromper seu uso abusivo de álcool. O uso diminuiu, mas de forma ainda insatisfatória para a esposa e filhos. Não conseguimos mantê-lo em tratamento e não conseguimos encaminhar o casal para terapia conjunta. É possível que, se Marta se sentisse suficientemente forte para acreditar que poderia se separar, o risco da perda seria estímulo para Pedro tratar-se. Mas tudo isso são hipóteses. Também não conseguimos que a mãe de Pedro retornasse às consultas.

O certo é que mais de três anos após o início do tratamento esta família voltou ao seu funcionamento pré-evento (conforme o seguimento incluído no início deste artigo), e Raul está estudando, trabalhando e namorando. É um caso bem sucedido, apesar do pessimismo inicial que alguns tinham.

Este não é um caso modelar de tratamento. Tivemos muitas dificuldades, mas esta é a prova de que, se pudéssemos atender com tanto afeto, cuidado e competência todos os casos de violência, poderíamos ter resultados bem melhores. e possivelmente esta seria reduzida na sociedade.

Esta era minha agenda secreta: se conseguíssemos ajudar neste caso extremo, demonstraríamos que a violência é um ato humano que se explica com referenciais humanos e que deve ser tratada com humanidade. Isso, na adolescência, inclui principalmente a colocação de limites claros. Demonstraríamos também que há esperança no fim do túnel para a sociedade.

Uma última palavra sobre a relação da equipe: mesmo com todas as divergências, nunca deixamos de ser apoiados pelo Serviço de Psiquiatria do hospital universitário e conseguimos manter um alto grau de confiança e parceria entre os que estavam diretamente envolvidos e outros colegas colaborando em vários momentos. Só com alta coesão e amizade na equipe é possível este tipo de trabalho.

Esta edição da Revista Brasileira de Psicoterapia, que fui convidada a coeditar, é uma grande oportunidade de discutir o tema da violência sob várias perspectivas, e foi feita com todos os cuidados éticos: todos os membros da família sabem e permitiram a publicação do caso desde que resguardadas suas identidades.

Estudar esse tema é uma iniciativa necessária já que o abuso de álcool e drogas, assim como a violência, tem características endêmicas e prevalência altíssima. Pior, nós das equipes de saúde não nos sentimos preparados para enfrentar seus desafios. No nosso caso, quando nos demos conta de que o desafio era passar de uma posição de impotência para outra, de utilizarmos os recursos que já tínhamos, a ênfase passou a ser não mudar a família, mas colocar à disposição dela os recursos da equipe. Assim, pudemos colher os resultados que foram plantados ao longo de dois anos.

Esta edição da revista, que inclui uma discussão verdadeiramente transdisciplinar do caso, torna-se uma referência para os que vão lidar com situações semelhantes. Estão incluídos desde os aspectos biológicos, relacionais, psicológicos, éticos, legais e sociológicos, abordando o paciente, a família, a equipe e a rede social.

Cabe aqui uma nota em resposta ao artigo de Douglas Bernstein que afirma estarmos assumindo um risco indevido ao expormos mãe e irmão a um possível ataque no futuro, tendo em vista a potencial periculosidade de Raul. É importante salientar que a bibliografia consultada sobre matricídio indica que é rara a reincidência de tais tentativas. Além disso, todos os cuidados legais foram tomados, e foi a família quem decidiu terminar o processo legal. Durante a fase aguda do tratamento, quando não se sabia ainda o grau de periculosidade de Raul, este estava sempre sob supervisão e dormia em quarto trancado e separado da casa. E, por ultimo, tanto Raul quanto sua família e seu atual psiquiatra foram bem instruídos sobre os riscos em caso de interrupção da medicação. Além disso, a mãe, em particular, está muito alerta e tem acesso imediato à sua psiquiatra e à equipe do hospital universitário.

Sentimos falta, no artigo do colega, de uma reflexão sobre o fracasso, nos Estados Unidos, da abordagem predominantemente punitiva da violência. Este país apresenta o maior número relativo de adolescentes encarcerados (em sua maioria, negros) e grande dificuldade de promover sua reinserção social quando a pena é concluída. Por outro lado, foi também nos Estados Unidos que Henggeler e colaboradores1,2 desenvolveram e testaram as intervenções multissistêmicas na violência juvenil, com resultados promissores.

Cremos estar cumprindo um dever social publicando e compartilhando este caso com os leitores, colaborando para o conhecimento na área da violência intrafamiliar.

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